Avançar para o conteúdo principal

Ao Lume da Água

Detinhamo-nos por entre a luz e o rumor
da alegria, o som da erva e a brandura grave
dos seus gestos. Tínhamos o sentido de tudo
ao alcance de nossas mãos. Quase bastaria
estendê-las e pousá-las na fria realidade,

tomar-lhe o peso redondo, sentir-lhe a superfície
apreensível. E, de repente, o negrume informe
e espesso, o desmoronar vertiginoso da razão
(Oh meu Amor, à beira da morte, tão perto
da vida! Estremeces nos meus braços,

levo na minha à tua boca a respiração
indispensável, um ténue sopro alveolar.
Estremeces, pequeno animal de ternura,
teu único sentido alerta, no mais um opaco
sono crepuscular. Gaivota surpreendida

no cerne da tormenta, tenteias hesitante,
vagarosamente, a frágil ponte lançada
através da bruma. Permaneces equilibrada
sobre o pavor e a ternura. Liga-nos uma acesa
elipse de fogo, uma curva seminal

apoiada em lábios, línguas, sexo
e nos bornes da imaginação. Por aí
circulamos, livres, esguios peixes
líquidos deslizando em silêncio
e penumbra. Amanhã não é, talvez.

Por ora respiras. Mantenho em perda
o teu corpo ao lume de água).
Detém-se da alegria o brando rumor;
Apaziguados os gestos, serena a erva.
Entre lodo e sal, devagar, cristaliza a luz.

in O Escriba Acocorado
Rui Knopfli

Comentários

Mensagens populares deste blogue

É este o dia anunciado, a hora da desesperança!

É este o dia anunciado, a hora da desesperança! Expulsos de um tempo julgado sem fim, onde os corpos se banharam indolentes e incautos, procuramos em vão, de novo, o caminho...sem um fio de luz, sem alento, sem consolo. Os teus olhos, os meus olhos, os nossos olhos quase cegos choram, tardiamente, a memória ardida, prostrados perante as etéreas cinzas que de nós se apartam. É esta a manhã negra do nosso desalento! Afastados da vida, num devir atormentado que nos lança as presas onde já não há carne,  resta-nos cumprir a pena aceitando-a como um bálsamo. Os meus braços, os teus braços, os nossos abraços esmagados, ameaçados, extintos, são as estátuas de pedra que tomam agora o lugar das árvores caídas. São estas as criaturas inumadas em que nos transfigurámos! E assim, levianos, soterrados no sedimento do nosso desânimo, ora resignados, ora alarmados, seguimos...com a granada dentro do peito. [ alma ]

Quando aprendemos a ouvir as árvores

"(...) quando aprendemos a ouvir as árvores, a brevidade e a rapidez e a pressa infantil dos nossos pensamentos alcançam uma alegria incomparável. Quem aprendeu a escutar as árvores já não quer ser uma árvore. Ele não quer ser nada, exceto o que ele é. Isso é estar em casa. Isso é a felicidade.” Herman Hesse pintura de David Hockney

Ana Paula Tavares | Ritos de Passagem