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Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2007

À luz da lua | 14

Pregnant woman Frans Koppelaar

Acontecimento

Tu choravas e eu ia apagando com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas – riscos na areia mole e quente do teu rosto. Choravas como quem se procura. E eu descobria mundos, inventava nomes, enquanto ia espremendo com as mãos o meu sangue todo no teu sangue. Não sei se o mundo existia e nós existíamos realmente. Sei que tudo estava suspenso, esperando não sei que grave acontecimento, e que milhares de insectos paravam e zumbiam nos meus sentidos. Só a minha boca era uma abelha inquieta percorrendo e picando o teu corpo de beijos. Depois só dei pela manhã, a manhã atrevida entrando devagar, muito devagar e acordando-me. Desviei os meus olhos para ti: ao longo do teu corpo morriam as estrelas. A noite partira. E, lentamente, o sol rompeu no céu da tua boca. Albano Martins

Studying

Bui Huu Hung

Praying

Bui Huu Hung

Dance of life

Andrew Lewandowski

The dance of life

Edvard Munch

A Vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua mais que perfeita imprecisão, os dias que contam quando não se espera, o atraso na preocupação dos teus olhos, e as nuvens que caíram mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações a abrir-se para dentro e para fora dos sentidos que nada têm a ver com círculos, quadrados, rectângulos, nas linhas rectas e paralelas que se cruzam com as linhas da mão; a vida que traz consigo as emoções e os acasos, a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram e dos encontros que sempre se soube que se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, sob a luz indecisa que apenas mostra as paredes nuas, de manchas húmidas no gesso da memória; a vida feita dos seus corpos obscuros e das suas palavras próximas. Nuno Júdice

Aqui nesta praia | 26

Reading by the shore,  Charles Sprague Pearce

Evening

Anne Horst

Segredo

Nem o Tempo tem tempo para sondar as trevas deste rio correndo entre a pele e a pele Nem o Tempo tem tempo nem as trevas dão tréguas Não descubro o segredo que o teu corpo segrega. David Mourão-Ferreira

Amor em solidão

Estrela que morreu Ainda palpita em vão A tua luz sou eu Amando em solidão Noturno mar sem Deus Tu és na escuridão Igual aos cantos meus Uma desolação Ah, se eu pudesse dizer-te Que pela graça de ver-te Já nem me importa ter que fingir E a cada ruga que nasce Tento esconder minha face Na máscara que te faz sorrir Porque este amor demais Que nunca vai ter fim Na morte que me traz É a vida para mim. Vinícius de Moraes

Colourful silence

Frank Pudney

São tristes os meus dias com pedras

São tristes os meus dias com pedras em lugar de mãos ou a cabeça funda na brancura de través do travesseiro e o corpo depresso em moles guindastes. São dias de chorar por menos ou teimar queixoso com um crânio polido, batuque convexo no muro demorado. Ficar a ouvir o sangue, o som tubular do sangue. Ao vale seco da clavícula atrair a água, o sangue e sorver a sopa intestina ou se o líquido escapa à boca tantálica, calar com argila o que me pede água. Ficar a palpar os buracos da ausência, as ligas da ausência, as ribanceiras a que caem os pensamentos, a cor dióspiro que banha a enfermidade e em seguida tomar o pulso evadido, travar o touro, o soco da dor, o infinito infinitivo presente. Uma amálgama de alma migra no fôlego de modorrento pregão de dor, o condor passa e anda andino e é uma traça asfixiante: faço um céu rarefeito, a dispneia é um felino que arranha céus e a boca rebuliço espúmeo expele o sabor da morte e o que mais consiga cuspir por entre ovéns e enxárcias e traves quebr

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma. João Cabral de Melo Neto

Breezing Up (A Fair Wind)

Winslow Homer Vou aproveitar esta brisa de feição...estarei de volta no final da próxima semana. Fiquem bem!

Barcos

Um a um para o mar passam os barcos Passam em frente de promontórios e terraços Cortando as águas lisas como um chão E todos os deuses são de novo nomeados Para além das ruínas dos seus templos. Sophia de Mello Breyner Andresen

Kung Hei Fat Choi

Porto Interior (Macau) Carlos Marreiros Feliz Ano Novo Lunar!
Zhang Jie

Caminho sem pés e sem sonhos

Caminho sem pés e sem sonhos só com a respiração e a cadência da muda passagem dos sopros caminho como um remo que se afunda. os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes para que a elevação e a profundidade se conjuguem. avanço sem jugo e ando longe de caminhar sobre as águas do céu. Daniel Faria

Voz

Olhamos à volta e não sabemos bem do que se trata. As mãos estão imóveis há algum tempo. É dentro delas que cabe tudo o que é nosso. O rumor que chega com o vento torna-se maior ao repararmos agora nas folhas. Alguém principiou a chamar-nos e é devagar que repete o mesmo nome, como se houvesse nos olhos qualquer sombra porque assim é tudo o que se ignora. Ao longe só ele pôde ver como estão os caminhos separados e as ondas se dirigem ao encontro de outras praias. Ficou ali suspensa uma luz desconhecida, agora recortada pela neblina que veio com a manhã: quem se encontra sozinho talvez conheça melhor o seu segredo. De novo se fecharam as nossas mãos. Há uma árvore que desperta com a sua forma pesada e simples. Fernando Guimarães

Aniversário

Salva-me agora, não desta morte ou de outra mas de ir vivendo assim seguramente sem música nem arte, e com o amigo ausente. No escuro ainda levantei-me e vi a antiga madrugada que nascia leve e primeira com a luz macia. E quem me ouvia, se não os mortos mansos e generosos sob a lousa fria? É certo que sonhei que me deixavas amar e ser amado, como quem sem mérito nem rosto me fizeste; mas era de cantor que me mandavas às portas da cidade ver arder o dia. António Franco Alexandre

Bonheur

Marc Chagall

Amor é o olhar total

Amor é o olhar total, que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música, porque é tão-só próprio e bastante, em si mesmo absoluto táctil, que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas, oferecidas sempre à àgua. Fiama Hasse Pais Brandão

La promenade

Marc Chagall

Bouquet aux amoureux volants

Marc Chagall

Vidrado

Se a chuva parasse continuarias a não estar aqui pelo que prefiro que a chuva prossiga como sulfúreo castigo; se te olho através da vidraça é porque penso ser um dia o namorado fantasma a espreitar-te do pára-brisas estilhado como de insistente postigo. Daniel Jonas

Nell' Acqua

Lorenzo Mattoti

Acerca do sentido (3)

A verdade cabia nos teus olhos, mas estes fecham-se com um movimento que se torna simples. Apenas a espuma era trazida pelas ondas e outros vestígios chegaram de um dia humedecido; depois, vimos como se deteve e ficou de novo submersa. Mas é dela que talvez se receba um aviso. Ainda hoje a esperamos quando junto de nós finalmente se encontra uma nova imagem abandonada pela proximidade da noite. Sabias que a verdade é um aviso? Fernando Guimarães

Acerca do sentido (1)

Aproxima-te. É assim que consegues encontrar algumas palavras. Estão juntas. Têm um sentido capaz de vir acompanhar-te como se pelos dedos escorresse um pouco de água, a sua transparência súbita. Recebe o que elas te podem dar agora, a respiração que fica tranquila e o mesmo aceno só para que depois consigas compreender como é fácil que tudo se perca nos teus olhos. Fernando Guimarães

Da Terra

Amar o mar completa a minha vida com o tacto de um amor imenso. Amar areia e margem arrebata-me de júbilo e paixão. Mas veio o vento e, por momentos, amargurou o meu corpo, a oscilar. E está o sol aqui, depois de uns dias de jardim obscurecido, a beber sombra. E sei que os átomos zumbem e dançam como os insectos ébrios em redor do pólen. Fiama Hasse Pais Brandão

Domingo no mundo | 12

O meu mundo és tu e eu Ricardo Tavares www.olhares.com

Entranced

Victor Wang

Aqueles claros olhos que chorando

Aqueles claros olhos que chorando ficavam, quando deles me partia, agora que farão? Quem mo diria? Se porventura estarão em mim cuidando? Se terão na memória, como ou quando deles me vim tão longe de alegria? Ou se estarão aquele alegre dia, que torne a vê-los, na alma figurando? Se contarão as horas e os momentos? Se acharão num momento muitos anos? Se falarão co as aves e cos ventos? Oh! bem-aventurados fingimentos que, nesta ausência, tão doces enganos sabeis fazer aos tristes pensamentos! Luís de Camões

The Moment of Time

Victor Wang

Cair do Pano

As acácias já se incendiaram de vermelho e o zumbido das cigarras enxameia obsidiante a manhã de Dezembro. A terra exala, em haustos longos, o aguaceiro da madrugada. Ao longe, no extremo distante da caixa da areia, o monhé das cobras enrola a esteira e leva o cesto à cabeça, cumprido o papel exacto que lhe coube e executou com paciente sageza hindu. Dura um instante no trémulo contraluz do lume a que se acolhe, antes da sombra derradeira. Assim, os comparsas convocados para esta comédia a abandonam, verso a verso, consignando-a ao olvido e à erva daninha que, persistente, a cobrirá irremediavelmente. O encenador faz a vénia da praxe e, porque aplausos lhe não são devidos, esgueira-se pelo anonimato da esquerda alta. É Dezembro a encurtar o tempo, o pouco que nos sobra. Rui Knopfli

O Monhé das Cobras

Manhã gloriosa, imobilizada na distância, no extremo da caixa de areia branca onde, agachado, anónimo e ascético, envolto em alvos panos e silêncio, está. O pudvém cobre-lhe o escroto e sobraça-lhe as pernas magras e finas de esquálido aracnídeo. No topo o turbante e a barba anciã oscilam na brisa matinal. Principia, então, a enfeitiçar o dia, com exactos gestos rituais. Ergue-se, por fim, plangente e implorativo, o sinuoso som, para revelar, em lentos arabescos, os assombros guardados no sábio cesto de vime. Obedientes, as cobras capelo encenam, à maneira, seu acto, a coberto da enganosa pintura. Húmidas, dardejam ao sol, rápidas, coruscantes e fatais línguas bífidas. Nós, meninos, paralisados de medo e espanto. A esteira irá perde-se no longe da areia, gasto tapete voador voando imóvel no céu profundo da imaginação. Privilegiado observador desta vigília acesa debruando já, de mansinho, as margens do sono. Rui Knopfli

Bela Silva

Três Mulheres, poema a três vozes (IV)

PRIMEIRA VOZ: Quem é ele, este rapaz azul e furibundo, Brilhante e estranho, como se tivesse sido arremessado de uma estrela? Tem um ar tão zangado! Voou pelo quarto adentro, com um berro no calcanhar. O azul empalidece. Afinal é humano. Um lotus escarlate abre-se na sua poça de sangue. Estão a coser-me com seda, como se eu fosse um pedaço de pano. O que fizeram os meus dedos antes de o erguer? O que fez o meu coração ao seu amor? Nunca vi nada tão claro. As suas pálpebras são como a flor do lilás E suave como mariposa a sua respiração. Não o abandonarei. não há ambição ou maldade nele. Que assim possa permanecer. Sylvia Plath traduzida por Ana Gabriela Macedo

Nude with lotus leaf

Dinh Quan

Lotus villager

Dinh Quan

Lady with golden apple

Dinh Quan

Unrevealed I

Dinh Quan

Canção de amor

Eu cantaria mesmo que tu não existisses, faria amor, assim, com as palavras. Eu cantaria mesmo que tu não existisses porque haveria de doer-me a tua ausência. Por isso canto. Alegre ou triste,canto. Como se, cantando, tocasse a tua boca, ainda antes da tua presença. Direi mesmo, depois da tua morte. Eu cantaria mesmo que tu não existisses, ó minha amiga, doce companheira. Eu festejo o teu corpo como um rio, onde, exausto, chegarei ao mar. Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses, porque nada eu direi sem o teu nome. Porque nada existe além da tua vida, da tua pele macia, dos teus olhos magoados. Assim quero cantar-te meu amor, para além da morte, para além de tudo. Joaquim Pessoa