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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2007

The shelter

Jan Saudek

First steps

Jan Saudek

Por um rosto chego ao teu rosto

Por um rosto chego ao teu rosto, noutro corpo sei o teu corpo. Num autocarro, num café me pergunto porque não falam o que vai no seu silêncio aqueles cujo olhar me fala da solidão. Esqueço-me de mim. Tão quieto pensando na sua pouca coragem, a minha sempre adiada. Por um rosto chegaria ao teu rosto, mesmo de um convite ousado fugiria, esta mão conhece-te e desenha no ar o hábito por que andou antes de saíres do espaço à sua volta. Estás longe, só assim podes pedir algumas horas aos meus dias. Sem fixar a voz a tua voz é uma corda, a minha um fio a partir-se. Helder Moura Pereira

Returning to mother's home

Wang Yi Dong

Going home

Wang Yi Dong

Remissão

Tua memória, pasto de poesia, tua poesia, pasto dos vulgares, vão se engastando numa coisa fria a que tu chamas: vida, e seus pesares. Mas, pesares de quê? perguntaria, se esse travo de angústia nos cantares, se o que dorme na base da elegia vai correndo e secando pelos ares, e nada resta, mesmo, do que escreves e te forçou ao exílio das palavras, senão contentamento de escrever, enquanto o tempo, e suas formas breves ou longas, que sutil interpretavas, se evapora no fundo de teu ser? Carlos Drummond de Andrade

À luz da lua | 16

Woman and Child Pablo Picasso

La femme et les roses

Marc Chagall

ars poetica

trabalhar o mundo, as relações de vizinhança entre os seres e as coisas, no intervalo exacto da sua infelicidade constritiva. encontrar o que te leva a dar essa ênfase à palavra, ou a tirar-lha, sempre que o sintas oportuno, calibrando-a em nome do que leste, de quem amas, de quem te desespera, de uma experiência única no emaranhar das sombras e das vozes. e técnica, técnica até ao sarro do silêncio e do ruído assim porás a nu o que a própria nudez por si não tem, a menos que, sofrendo, lho acrescentes. a poesia revela inesperados desencontros e neles poderás modular-te, falar das tuas ilusões, do que te falta até ao osso. nem outra coisa é o desengano: simular uma ordem entrevista e sustentá-la in absentia ou no luto. vem a dar ao mesmo. o âmago do poema é o seu mecanismo e o seu mecanismo só tu podes inventá-lo e pô-lo a funcionar para que alguém nele se reonheça e também faça do interior do poema a sua casa, encontre nela o seu espaço, meça por ela o seu tempo, guarde nela contigo

ars poetica

Sempre aspirei por uma forma mais ampla, que não fosse nem poesia nem prosa em demasia e permitisse a compreensão, sem expor ninguém, nem autor nem leitor, a grandes tormentos. Em sua essência, a poesia é algo horrível: nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós, e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre, e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris. É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito, embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo. É difícil de entender a soberba dos poetas, por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta. Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios, que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas, e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos, ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer? Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado, alguém poderá pensar que estou brincando apenas, ou que e

Pink blossoms

Le Thanh Son

Raining season

Le Thanh Son

Knapsack

Andrew Wyeth

Habitar o tempo

A F.A. Bandeira de Melo Para não matar seu tempo, imaginou: vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo; no instante finíssimo em que ocorre, em ponta de agulha e porém acessível; viver seu tempo: para o que ir viver num deserto literal ou de alpendres; em ermos, que não distraiam de viver a agulha de um só instante, plenamente. Plenamente: vivendo-o de dentro dele; habitá-lo, na agulha de cada instante, em cada agulha instante: e habitar nele tudo o que habitar cede ao habitante. E de volta de ir habitar seu tempo: ele ocorre vazio, o tal tempo ao vivo; e como além de vazio, transparente, o instante a ahbitar passa invisível. Portanto: para não matá-lo, matá-lo; matar o tempo, enchendo-o de coisas; em vez do deserto, ir viver nas ruas onde o enchem e o matam as pessoas; pois como o tempo ocorre transparente e só ganha corpo e cor com seu miolo (o que não passou do que lhe passou), para habitá-lo: só no passado morto. João Cabral de Melo Neto

Aqui nesta praia | 28

Baigneuses,  Salvador Dali

L´anniversaire

Marc Chagall

Fica, do sangue que me corre no corpo

Fica, do sangue que me corre no corpo, dos olhos estendidos no caminho à minha frente, o soluçar das ancas no meu coração e um respirar antigo no pescoço.

À luz da lua | 15

Mêre et Enfant au Bouquet Marc Chagall

Escrevias pela noite fora

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava o que ia ficando nas pausas entre cada sorriso. Por ti mudei a razão das coisas, faz de conta que não sei as coisas que não queres que saiba, acabei por te pensar com crianças à volta. Agora há prédios onde havia laranjeiras e romãs no chão e as palavras nem o sabem dizer, apenas apontam a rua que foi comum, o quarto estreito. Um livro é suficiente neste passeio. Quando não escreves estás a ler e ao lado das árvores o silêncio é maior. Decerto te digo o que penso baixando a cabeça e tu respondes sempre com a cabeça inclinada e o fumo suspenso no ar. As verdades nunca se disseram. Queria prender-te, tornar a perder-te, achar-te assim por acaso no meu dia livre a meio da semana. Mantêm-se as causas iguais das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono custa. Porque estou contigo e me deixas a tua imagem passa pelas noites sem sono, está aqui a cadeira em que te sentaste a escrever lendo. Pudes

Cats cradle

Zhu Yiyong

A warm breeze

Zhu Yiyong

Summer night

Zhu Yiyong

A mágoa é um vício

A mágoa é um vício, a ele volto pelas madeiras desta casa, as memórias são mais que os sinais pendurados ao longo das paredes, não descrevo o que vejo. O que sinto quase está no silêncio, deixa de ser tempo o tempo da noite, nos papéis há desenhos que o matam, pontos ganhos, contas de somar, fáceis artimanhas evitando as palavras. Nada difere de como ponho a mão na testa, de como se afasta o sol para trás dos castanheiros. Tento dizer que sou como vós, leves amantes de suaves lazeres, contradigo, desminto, nada acontece. Para o dia de hoje um pequeno esboço de tristeza, derrota de cumprir, tarefa de vencer, antes da noite os ombros, as rugas, terão significado preciso. Só o recomeço será tempo de sorrisos. Helder Moura Pereira

Misty moonlight

Zhu Yiyong

An Autumn evening

Zhu Yiyong

Morning dew

Zhu Yiyong

como a sentir a tua cara rente

como a sentir a tua cara rente à minha e as tuas mãos nas minhas, ou como se a dança amarguradamente nos desse nesta noite ainda um slow levado a medo, apenas a ternura a conduzir de leve os nossos passos e o corpo estremecendo-te à procura do seu lugar na grade dos meus braços e a luz, fina película de vidros por entre a frialdade de janeiro, a trespassar os corações partidos estranhamente, e o meu sendo o primeiro, como se não doesse o que doía na própria dor tingida de alegria. Vasco Graça Moura

Os teus olhos falam mais que a tua boca

Os teus olhos falam mais que a tua boca, movem-se à procura do raciocínio, da palavra certa que não há ou apenas vendida à ilusão e à crença. Os teus olhos movem os meus, se os seguir hei-de perceber o convencimento e a alegria. Por tais armadilhas não hei-de morrer, por um copo de vinho contigo escolhido posso matar longínquas recordações do corpo. Vejo o fosso, a vala à altura de um homem, o cheiro a desinfectante, o túnel da vida que é uma estrada que vai dar ao mar e por ele passo sem dar por isso, a morada é um número. Nas grandes interrogações passo o tempo final do dia, estantes arrumadas, um ar de ocasionais disfarces, o sangue preso às veias por tão pouco. Moinho de papel e pequenas figuras humanas a lápis de cor povoam esta sala, a sua casa, há uma inesperada ternura nos recortes e nas histórias contadas a uma mesa para o riso, para perguntas obscuras. Só sei que olho para os teus olhos a querer saber se ficamos, se partimos para onde não houver vento. Helder Moura Pereira

Day dream

Andrew Wyeth

Morna

É já saudade a vela, além. Serena, a música esvoaça na tarde calma, plúmbea, baça, onde a tristeza se contém. os pares deslizam embrulhados de sonhos em dobras inefáveis. (Ó deuses lúbricos, ousáveis erguer, então, na tarde morta a eterna ronda de pecados que ia bater de porta em porta!) E ao ritmo túmido do canto na solidão rubra da messe, deixo correr o sal e o pranto - subtil e magoado encanto que o rosto núbil me envelhece. Daniel Filipe

Tu és a esperança, a madrugada

Tu és a esperança, a madrugada. Nasceste nas tardes de setembro, quando a luz é perfeita e mais dourada, e há uma fonte crescendo no silêncio da boca mais sombria e mais fechada. Para ti criei palavras sem sentido, inventei brumas, lagos densos, e deixei no ar braços suspensos ao encontro da luz que anda contigo. Tu és a esperança onde deponho meus versos que não podem ser mais nada. Esperança minha, onde meus olhos bebem, fundo, como quem bebe a madrugada. Eugénio de Andrade

Aqui nesta praia | 27

The Wave,  William-Adolphe Bouguereau

Coisa Amar

Contar-te longamente as perigosas coisas do mar. Contar-te o amor ardente e as ilhas que só há no verbo amar. Contar-te longamente longamente. Amor ardente. Amor ardente. E mar. Contar-te longamente as misteriosas maravilhas do verbo navegar. E mar. Amar: as coisas perigosas. Contar-te longamente que já foi num tempo doce coisa amar. E mar. Contar-te longamente como dói desembarcar nas ilhas misteriosas. Contar-te o mar ardente e o verbo amar. E longamente as coisas perigosas. Manuel Alegre

Domingo no mundo | 13

Reunião João Santiago http://www.olhares.com/

O desejo

O desejo, o aéreo e luminoso e magoado desejo latia ainda; não sei bem em que lugar do corpo em declínio mas latia; bastava abrir os olhos para ouvir o nasalado ardor da sua voz: era a manhã trepando às dunas, era o céu de cal onde o sul começa, era por fim o mar à porta - o mar, o mar, pois só o mar cantava assim. Eugénio de Andrade

Encostas a face...

Encostas a face à melancolia e nem sequer ouves o rouxinol. Ou é a cotovia? Suportas mal o ar, dividido entre a fidelidade que deves à terra de tua mãe e ao quase branco azul onde a ave se perde. A música, chamemos-lhe assim, foi sempre a tua ferida, mas também foi sobre as dunas a exaltação. Não ouças o rouxinol. Ou a cotovia. É dentro de ti que toda a música é ave. Eugénio de Andrade

Porque te amo

Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. Carlos Drummond de Andrade