Avançar para o conteúdo principal

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa


que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me


a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu,
estrelas que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.




Maria do Rosário Pedreira

Comentários

Mensagens populares deste blogue

É este o dia anunciado, a hora da desesperança!

É este o dia anunciado, a hora da desesperança! Expulsos de um tempo julgado sem fim, onde os corpos se banharam indolentes e incautos, procuramos em vão, de novo, o caminho...sem um fio de luz, sem alento, sem consolo. Os teus olhos, os meus olhos, os nossos olhos quase cegos choram, tardiamente, a memória ardida, prostrados perante as etéreas cinzas que de nós se apartam. É esta a manhã negra do nosso desalento! Afastados da vida, num devir atormentado que nos lança as presas onde já não há carne,  resta-nos cumprir a pena aceitando-a como um bálsamo. Os meus braços, os teus braços, os nossos abraços esmagados, ameaçados, extintos, são as estátuas de pedra que tomam agora o lugar das árvores caídas. São estas as criaturas inumadas em que nos transfigurámos! E assim, levianos, soterrados no sedimento do nosso desânimo, ora resignados, ora alarmados, seguimos...com a granada dentro do peito. [ alma ]

Quando aprendemos a ouvir as árvores

"(...) quando aprendemos a ouvir as árvores, a brevidade e a rapidez e a pressa infantil dos nossos pensamentos alcançam uma alegria incomparável. Quem aprendeu a escutar as árvores já não quer ser uma árvore. Ele não quer ser nada, exceto o que ele é. Isso é estar em casa. Isso é a felicidade.” Herman Hesse pintura de David Hockney

Ana Paula Tavares | Ritos de Passagem