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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2014

Boca da Foz (V)

Pelo caminho do estaleiro vê-se uma linha de luzes que ilumina os últimos homens que regressam a casa. Ouvem-se amiúde, pedaços da sua conversa, e gargalhadas. O mesmo ritual de todos os dias a refocilar o ânimo e a camaradagem que os une. Antes de entrar em casa, Natália vê Sebastião encostado na janela do quarto e lembra-se das pequenas conversas que têm. Recorda-se das primeiras, quando ele lhe perguntava, várias vezes, e sempre como se fosse a primeira vez: “Para onde foram os papás?”. Natália respondia-lhe: “Partiram, meu amor!”. Ao final de algum tempo, provavelmente depois de Sebastião considerar que a mesma resposta sempre dada seria um sinal convincente sobre a sua veracidade, começou a questionar: “Para onde?”. E aí Natália respondeu “Para as estrelas!”. Depois disso, passaram a falar de muitas outras coisas, e de astronomia. Sebastião começou a interessar-se pelos cometas, pelos planetas e pelas estrelas e, todos os dias, Natália lhe ensinava uma palavra nova sobre o uni

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Cloudy sky and shining sea 2

Boca da Foz (IV)

Natália desce a rua rapidamente. Saiu à sorrelfa de casa sem avisar Sebastião quando reparou que se esquecera de um dos sacos de compras na mercearia. Quando entra no caminho que vai dar à praça cruza-se com Gabriel, que vem em sentido contrário: - Olá Gabriel! Ele responde-lhe uns passos mais à frente: - Natália! – e a resposta parece mais um apelo. Natália vira-se. Olha-o. O corpo de Gabriel no meio da rua parece absorvido pelo azul-escuro do mar, ao longe. Lenta e dolorosamente, quase desaparece. Já com o saco esquecido na mão, pára à porta da mercearia. Apetece-lhe andar. A sua cabeça nunca pára mas quando caminha pensa tudo mais claramente. Havia um lado muito físico no ato de pensar. O movimento arredondava cada aresta de cada interrogação e quase tudo se encaixava de forma perfeita. Virou-se no sentido inverso ao de sua casa e seguiu em direção à praça. Um pouco mais à frente, pára no pequeno miradouro. Olha para a estrada que entra na vila. Espera ver o carro de S

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the black and white sea nº2 de herbstkind

Boca da Foz (III)

A vila começava a aquietar-se a meio da tarde. Ouvia-se a harmonia suave e sem pressa, das águas do rio a caminho do mar. Quando a noite se aproximava, instalava-se uma espécie de silêncio. Uma quietude e um sossego peculiares. As pessoas continuavam a circular pelas ruas, havia movimento no café e na mercearia, mas falava-se em surdina. Como se, àquela hora do dia, a vida se desenrolasse à luz das velas. Por essa razão, a presença de Alberto naquela altura, no meio da praça, era um impropério. Ele era um néscio insuportável. Ocupava diariamente todos os recantos da vila, do largo da igreja ao caminho da praia, enchendo os ouvidos dos incautos peões com uma palinódia de palavras sem nexo. Estava sempre contra tudo, e contra todos. Não havia remédio nem solução para nada. Todos os caminhos eram de perdição e o fim do mundo respirava-se mais intensamente a cada segundo que passava. De todas as profecias que a sua voz vociferou, uma manteve-se inalterada. Boca da Foz seria engolida

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Denver

Boca da Foz (II)

Passaram mais ou menos 6 anos. Naquele lugarejo, era mesmo difícil contar os dias, os meses, os anos. Havia horas que duravam alguns minutos e dias que se prolongavam por vários meses. Tal como no resto do mundo, amanhecia e anoitecia em Boca da Foz, mas esses eventos não determinavam por si só o início ou o fim de alguma coisa. Eram apenas uma orientação, uma referência útil, porque a vila não vivia isolada. Era como se o tempo fosse intuído, pressentido pela alma de cada um.   Sebastião entrou na vida deles num dia muito curto de novembro. Precisamente há 3 anos. Num dia tão curto e com tão pouca luz que recordá-lo tornara-se confuso. Ficara sozinho de repente. Sem entender o que acontecera. Sem perceber se, inadvertidamente, poderia ter sido ele a provocar aquela situação. Mas não sentiu qualquer espécie de medo ou susto, ou até mesmo de tristeza. Ele parecia antever o que o esperava. Como se a sua vida fosse uma história já contada pela sua mãe, à noite, antes de adormecer.

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Antoni Garcia

Boca da Foz (I)

O ruído era quase ensurdecedor. Durante toda a tarde, o estaleiro esteve num enorme reboliço. Depois da tempestade da semana passada, tantos eram os barcos danificados, que as mãos não se perdiam com tanto trabalho. Mas o ruído, não tanto pela intensidade mas pela persistência, estalava, pé ante pé, no cérebro de Natália. A noite encostava-se cada vez mais na serra e deslizava como uma cobra pela encosta. De um dos lados, ainda se via bem a charneca e o rosa ainda ténue das primeiras urzes pareciam luzinhas a ladear o caminho até à falésia. Da janela, ouvia-se um assobio quase abafado pelo arruído daquela tarde. Uma melodia alongada e triste arrastava o passo de Gabriel pelo caminho do estaleiro. Todos os dias a entoava, ao final da tarde, no regresso a casa, como um ritual que o preparava para entrar na estranheza das suas noites. Era um homem doce e amical , mas contido, como se algo dentro de si estivesse eternamente ferido e sem cura. Por vezes, andava como se estivesse num

...quem escreve um conto...

No âmbito de uma atividade que envolve a partilha de "Palavras do dia", foi lançado o desafio de escrever um conto incluindo um determinado grupo dessas palavras (assinaladas a bold/negrito). Vou publicar aqui, pedaço a pedaço, o conto (o meu primeiro) que escrevi...chama-se Boca da Foz.