A vila começava a aquietar-se a meio da tarde.
Ouvia-se a harmonia suave e sem
pressa, das águas do rio a caminho do mar. Quando a noite se aproximava,
instalava-se uma espécie de silêncio. Uma quietude e um sossego peculiares. As
pessoas continuavam a circular pelas ruas, havia movimento no café e na
mercearia, mas falava-se em surdina. Como se, àquela hora do dia, a vida se desenrolasse
à luz das velas.
Por essa razão, a presença de Alberto naquela
altura, no meio da praça, era um impropério. Ele era um néscio insuportável. Ocupava diariamente todos os recantos da vila,
do largo da igreja ao caminho da praia, enchendo os ouvidos dos incautos peões
com uma palinódia de palavras sem
nexo. Estava sempre contra tudo, e contra todos. Não havia remédio nem solução
para nada. Todos os caminhos eram de perdição e o fim do mundo respirava-se
mais intensamente a cada segundo que passava. De todas as profecias que a sua
voz vociferou, uma manteve-se inalterada. Boca da Foz seria engolida por uma
onda negra, gigante e espessa, carregada de algas demoníacas. Uma espécie de
maremoto infernal. Ao longo dos anos, apurou o discurso, descrevera com
pormenores demasiado específicos e assustadores cada um dos demónios que
chegaria enrolado na massa de água e, desta forma, inconscientemente, cada um
tinha interiorizado a história dos últimos dias de Boca da Foz, como algo de
certo e já confirmado por uma espécie de futuro histórico.
Alberto nunca andava só. Amélia, a sua estranha e
quase invisível mulher, mais parecia um escarabocho
ao seu lado e, no seu andar de songamonga, acompanhava-o sempre, e para todo o
lado.
Cobria-se de roupa o ano inteiro. Sempre de lenço,
chapéu, e saia comprida, era por vezes no casaco justo que lhe acomodava as
ancas, que se fazia adivinhar alguma elegância. Nas poucas vezes que se descobria
por inteiro a sua cara, a revelação era surpreendente. Amélia tinha traços
distintos. Inesquecíveis. Uma beleza perturbante, diziam. Os tecidos
aligeiravam no verão mas, nos dias mais frios de inverno, a mulher parecia uma
enorme mancha amorfa ao lado de Alberto. Como se tivesse construído um casulo
e, dentro dele, a sua vida se resguardasse numa vagarosa e solitária
respiração. Uma respiração de memórias.
Uma toada sombria chega perto de Amélia. Gabriel pára.
Encosta-se ao tronco de uma árvore. Amélia levanta a cabeça. Vira-se. A pouca
luz que resta do dia ilumina os seus olhos esquivos cor de mel. Os seus olhos
húmidos de uma inesperada doçura. Gabriel olha-a de longe. Consegue vê-la por
inteiro no seu corpo gasalhado.
Consegue vê-la. Cada dedo das suas mãos brancas e finas, cada palavra adiada e
guardada, o fio dos seus cabelos longos, ondulados, ainda cheios de fogo, os
seus lábios fechados como duas asas quietas e rosadas e os seus olhos. “Meu
Deus…os seus olhos!”.
Comentários