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Mensagens

A mostrar mensagens de 2016

All Bells In Paradise | Kings College Choir, John Rutter

A Biblioteca Vazia

C onto escrito sobre A Biblioteca, de Zoran Zivkovic. Caros companheiros do clube de leitura Pareceu-me apropriado sugerir que nos encontrássemos hoje para uma degustação. No encalce de Zoran cada um de nós deliciar-se-ia com o seu livro, partilhando os sabores originais que tal manjar descobriria, ou não…contudo… encontro-me impedida de o fazer. Terminada ontem a leitura, guardei como sempre o meu Zoran, na minha mochila, no seu compartimento. Esta seria a última vez que nos veríamos. Em casa, quando mergulhei a minha mão para recolher, ciosa, e uma a uma, todas as bibliotecas lidas, não as encontrei. Nenhuma, sem explicação e sem rasto. Nunca, nenhum livro, por muito fraco, decrépito, ruim ou danado que fora, se atrevera a deixar alguém. Mas Zoran fê-lo. Zoran atreveu-se a desafiar o impossível. Zoran chamou-me de modo furtivo e dissimulado, abraçou-me, levou-me por atalhos singulares e estrangeiros. Desafiou-me no exato e cirúrgico modo que sabia me aprazer e, depoi

Screen I

Alexandra Hedison

Explicação da eternidade

devagar, o tempo transforma tudo em tempo. o ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. os assuntos que julgámos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. por si só, o tempo não é nada. a idade de nada é nada. a eternidade não existe. no entanto, a eternidade existe. os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. os instantes do teu sorriso eram eternos. os instantes do teu corpo de luz eram eternos. foste eterna até ao fim.  José Luís Peixoto

Queda

O vazio cai abissal no rasgo dos olhos Carlos Couto Amaral O Alpinista Descendente, é o livro que abre hoje a 2ª época do Clube de Leitura da  Livraria e Papelaria Espaço , em Algés

Fever

Maria Kreyn

Escuta, Amor

Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra. (...) José Luís Peixoto Abraço

Peito vazio

Roberta Sá e Ney Matogrosso

alone together

Maria Kreyn http://mariakreyn.com/alone-together

fingir que está tudo bem

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. José Luís Peixoto

Sleeping beauties

Teresa Dias Coelho

Noite apressada

Era uma noite apressada depois de um dia tão lento. Era uma rosa encarnada aberta nesse momento. Era uma boca fechada sob a mordaça de um lenço. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso! Imensa, a casa perdida no meio do vendaval; imensa, a linha da vida no seu desenho mortal; imensa, na despedida, a certeza do final. Era uma haste inclinada sob o capricho do vento. Era a minh'alma, dobrada, dentro do teu pensamento. Era uma igreja assaltada, mas que cheirava a incenso. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso! Imensa, a luz proibida no centro da catedral; imensa, a voz diluída além do bem e do mal; imensa, por toda a vida, uma descrença total! David Mourão-Ferreira

Passagem

Com que palavras ou que lábios é possível estar assim tão perto do fogo e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas, tão sem peso por cima do pensamento? Pode bem acontecer que exista tudo e isto também, e não só uma voz de ninguém. Onde, porém? Em que lugares reais, tão perto que as palavras são de mais? Agora que os deuses partiram, e estamos, se possível, ainda mais sós, sem forma e vazios, inocentes de nós, como diremos ainda margens e diremos rios? Manuel António Pina

Message from the Sea

Christian Schloe

A noite encosta-se nas minhas costas como uma irmã que esteve ausente

A noite encosta-se nas minhas costas como uma irmã que esteve ausente, e promete-me que a morte é apenas mais um movimento. Ela deixa o meu corpo arder vagarosamente na luz que ainda persiste no mar, e lembra-me que esta mesma luz que agora me extingue, é a mesma que iluminou o meu passado, esta mesma chama que agora me arrefece, é aquela que me silenciou os medos,  e o mar que me engole tem o mesmo sal que outrora me sarou. A minha irmã impudente e ciosa, cobre-me com um manto pardo, uma pele tecida de pecados e virtudes, áspera, perfumada e penosa, uma mortalha que me consome o oxigénio no seu odor placentário e primordial. Não sei se me entrega, se me devolve, ou me abandona. A noite encostou-se nas minhas costas como uma irmã que esteve ausente, e prometeu-me que a morte era apenas mais um movimento, e os nossos dias um ciclo de Perseidas que não se extingue. [ alma ]